10 de fevereiro de 2013

CONTO – EDWARD E. SMITH

DESASTRE NA MONTANHA

Muitas pessoas morrem em desastres, outras renascem…

— Devem ficar todos quietos, absolutamente imóveis!
 A voz do motorista era áspera e carregada. Ecoou pelo autocarro silencioso, através do microfone. Disse as palavras em inglês, num inglês de guia turístico, depois repetiu-as em francês, alemão e italiano.
Os passageiros, com os rostos cinzentos de medo, ficaram paralisados. Era como se a morte já se tivesse apossado deles. Só os olhos viviam, brilhando com uma estranha luz. Movendo-se de um lado para outro, olhando a estrada, numa esperança de salvação, fazendo tudo para não olhar em frente. Por cima do boné do motorista, através do para-brisas, para o nada que havia além do capô.
As rodas dianteiras giraram vagarosamente no ar, a duzentos metros acima do rio. Para trás, ficava a estrada cheia de curvas, cavada no dorso da montanha.
— Todos devem conservar-se imóveis.
O motorista repetiu o aviso. Tinha o microfone colado aos lábios. As vogais sibilavam, zangadas.
— A equipa de manutenção da estrada, por que passamos há pouco, descerá para nos salvar. Içarão o autocarro e poderemos sair.
Era curioso que o motorista falasse primeiro em inglês, pensava Joe Stevens. Das quarenta pessoas que estavam no autocarro, somente duas, ele e Mabel, falavam inglês. Mas os suíços eram assim… a preferência era sempre para os turistas. Ou pensaria ele, que os dois americanos de meia-idade seriam os primeiros a deixar-se invadir pelo pânico e a atirar-se no abismo?
Joe deixou que os olhos míopes, com lentes bifocais, corressem por sobre as cabeças rígidas dos passageiros. Compreendeu, com satisfação, que estava perfeitamente calmo. O contador que durante trinta anos nunca se enganara continuava a dominar as próprias emoções.
— Nunca deveríamos ter feito esta viagem. Eu sabia que não devíamos ter vindo!
A voz de Mabel, alta e estridente, bateu-lhe nos ouvidos. Ouvira aquela voz assim muitas vezes e sabia que era o prelúdio de uma cena, a menos que tivesse muita habilidade. Era preciso responder: “Tens razão, querida!”, quando voz dela se elevava, assim. Agora, entretanto, havia na voz de Mabel uma nota que nunca ouvira.
Voltou os olhos para fitá-la, para o rosto grande e forte, com um queixo teimoso e olhos esbugalhados. Pela primeira vez na vida, viu naquele rosto o medo da morte.
— Não digas disparates — murmurou Joe, friamente. Nunca lhe falara assim, em trinta anos, mas era o único meio de lidar com uma Mabel quase a ponto de se entregar ao pânico.
— A estrada do Passo de Gotthard — disse ele, — Uma obra-prima da engenharia. E tu dizes que não devíamos ter vindo!
Joe sentia-se muito seguro de si, pendurado duzentos metros acima da morte e sem ter o menor medo. Sempre soubera que seria firme num momento de perigo, que seria o mais forte.
— Mais de oitenta curvas como esta, umas depois das outras. Oitenta!
Olhou outra vez para a esposa. Viu o terror estampado nos olhas dela. Nada restava da mulher que o dominara durante anos e anos.
Joe teve uma ideia. Terrível, mas lógica. Uma sequência natural de sua nova força.
— Sabes — disse ele, olhando para a mulher pelo canto do olho. — Esta estrada está toda minada. Os militares deixaram minas ao passar por aqui.
No silêncio mortal do autocarro, a voz de Joe era alta demais. Viu o motorista olhando para ele, pelo espelho retrovisor. Baixou a voz.
— Estás a ver o rio lá em baixo, no vale? Podes vê-lo no fim da primeira curva. Como um fio de linha branca num fato preto. Uma queda de trezentos metros, daqui até lá abaixo.
Ouviu-se o som de um guindaste, trazido pelo vento. As cabeças votaram-se, rígidas. — Conservem-se todos imóveis, voltou a pedir a motorista. — Não se movam. Não demorará muito agora.
Joe inclinou a cabeça, até que seus lábios quase tocaram os ouvidos de Mabel.
— Disseram-me que um autocarro caiu, certa vez, na segunda curva. Foi uma espécie de desastre de avião. Colocaram uma cruz no lugar onde saiu da estrada.
Ergueu os olhos e fitou o rosto da mulher. O que viu fê-lo compreender que tinha ido longe demais. O rosto de Mabel era uma máscara de morte onde os olhos não tinham brilho, nem expressão. O medo fizera-a perder a noção até mesmo das palavras que ele pronunciara.
Naquele momento, tudo o que sofrera desapareceu. Houvera ainda, outros momentos, na vido de ambos. Ela cuidara bem dele. No primeiro ano de vida em comum, tinham-se amado. Uma paixão profunda, que as conservara unidos, mesmo depois que passara.
Naqueles primeiros dias, era Mabel quem dizia “Sim, querido”. Só depois de começar a ficar importante no escritório é que ele se deixara subjugar em casa. Sem saber como, começara a dizer, “Sim, querida”.
E agora o caso estava perdido. Aterrorizara-a demais. Não podia dominá-la assim como estava, paralisada pelo pavor.
De novo o ruído do guindaste encheu o autocarro. Joe viu os rostos pálidos dos passageiros, voltadas para as janelas. O motorista continuava a olhar pelo retrovisor, atento a qualquer sinal de pânico.
— Mais um pouquinho de calmo. Em breve estará tudo resolvido — disse — O guindaste aguentará, enquanto sairmos. Tudo se resolverá satisfatoriamente.
Por um instante, a ruído do guindaste cessou. Teria deixado de funcionar? Estaria avariado? Por um agonizante segundo, este pensamento atravessou todas as cabeças torturadas. Logo a seguir, ouviram o som da máquina e qualquer coisa agarrou o autocarro pela retaguarda, fazendo-o pender para um dos lados, como um bêbado. Ouviu-se o ruído de terra a cair no abismo.
Joe sentiu, mais do que ouviu, o grito de Mabel. Bateu-lhe na cara com a mão bem aberta. O grito morreu num soluço, quase ao nascer.
— Podem começar a sair agora — gritou o motorista o ruído do guindaste. — Com calma. Um banco de cada vez… a começar da frente.
Joe ficou tranquilamente sentado, esperando que os outros saíssem em fila pela porta de emergência. Não olhou para Mabel. A mulher soluçava baixinha e ele não queria ver-lhe as lágrimas. Agora, que a sua ideia dera resultado, não estava nada satisfeito. Não tivera nenhum prazer em bater na mulher.
O banco da frente esvaziou-se. Joe voltou-se para Mabel:
— Vamos, anda. Não te apresses. Vá devagarinho.
Mabel olhou para ele, que se pusera de pé. Uma figura muito pequena e encolhida, os olhos cheios de lágrimas e no rosto as marcas vermelhas de dedos.
— Sim, querido — disse ela.
Afinal, pensou Joe, não fora assim tão ruim, ter-lhe batido. O homem tinha outro aspecto, quando seguia ao lado da mulher, ajudando-a a descer do autocarro.
O aspecto de um homem que começava a viver.

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