5 de janeiro de 2013

POLICIAL OU POLICIÁRIO?

Autor: Dr Raul Machado (Presidente da Sociedade de Língua Portuguesa
Artigo publicado na revista Investigação em Janeiro de 1954


Policial ou policiário?
Digamos desde já que pode ser policial e policiário, porque um e outro estão bem formados, como o estão também os adjectivos judicial e judiciário. Estes últimos, porém, contam já longos anos de existência, pois vêm lá do velho latim, iudiciolis e iudiciarius, ao passo que os outros dois, trazidos aqui ao tribunal da crítica, não gozam de avançada idade.
O adjectivo policial só aparece registado a primeira vez na 2ª edição do dicionário de Morais, (a 1ª de 1813, não inclui o termo); encontra-se ele depois em todas as edições até à 9ª (a 10ª não chegou a essa palavra, nem sequer à letra P). Os dicionários de Cândido de Figueiredo e o de Caldas Aulete, muito posteriores ao de Morais, registam igualmente o termo policial.
Não custa nada afirmar que todos os dicionários e vocabulários, de maior ou menor categoria — (foram manuseados para este fim doze léxicos diferentes, além dos referidos 'acima) — todos, sem excepção, arquivam o vocábulo policial.
A “Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” é a primeira publicação lexical portuguesa que regista o termo policiário em data bastante recente. Mas note-se que o vocábulo policiário vem anotado ali, não como adjectivo, mas como substantivo, para significar “instituição restritiva das liberdades sociais ou humanas”; e cita-se, como abonação para a palavra policiário, um passo de Silva Bastos, pág. 42, da História da Censuro Intelectual em Portugal: “… a Inquisição e o Jesuitismo, os dois famosos policiários Contra-Reforma…”
É pois, lícito inferir que, pela consulta dos registos vocabulares existentes no país, o adjectivo policiário é um neologismo de criação recente, ainda não incluído nos léxicos nacionais.
Quem terá criado esse neologismo? Parece que o termo policiária como adjectivo, saiu a primeira, vez da mão de Fernando Pessoa, em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, no dia 13 de Janeiro de 1935, e publicada na “Antologia de Autores Portugueses e Estrangeiros”, — Poesia — Fernando Pessoa— Segundo Volume, pág. 10, onde se lê a seguinte expressão — “novela policiária”.
Criado, esse adjectivo novo tem proliferado largamente em múltiplas expressões, como “problema policiário”, “coisa policiária”, “família policiária”, “colecção policiaria”. Formou-se, a par, o substantivo policiário que entra em frases como as seguintes: “uma sátira ao policiário de concepções americanas”; “o policiário tinha sido desenvolvido em Portugal com e por Reinaldo Ferreira»; “havia os bons e os maus romances, como na policiário havia os bons e maus autores”; etc.
As expressões e frases agora citadas, com o termo policiário, adjectivo e substantivo, respigaram-se na Separata nº 4 (Vol. 30) da Colecção XIS.
Nesta mesma separata se observa que, a propósito de uma festa do semanário Cartaz, alguém usou, ao microfone e na representação, “dezenas de vezes o termo policial, e nem uma só o policiário”.
Em outro local, na “História do Conto Policial” de Vítor Palla, empregando-se com largueza a palavra policial, acrescenta-se “policiárias, dizia Fernando Pessoa”.
O aparecimento do vocábulo na carta do poeta da Mensagem para Casais Monteiro, a paternidade do termo atribuída a Fernando Pessoa, o uso recente e abundante da palavra, dão-nos a convicção de que antes de 1935 não havia penetrado no léxico em Portugal o adjectivo policiário.
Perguntar-se-á agora se o termo policiário adjectivo e substantivo, fazia ou faz falta na língua, portuguesa, onde vive, há mais de cem anos, a palavra policial.
Notemos, antes de mais nada, o facto palpável da existência actual de um género novo de literatura de ficção em que abundam os temas de carácter policial. Notemos, ao mesmo tempo, que o organismo policial, incumbido oficialmente e legalmente da investigação policial, não intervém, directa nem indirectamente na descoberta desses crimes de fantasia, nem na sua análise, nem na prisão dos seus autores, nem na organização dos seus processos e julgamento.
Tais crimes fictícios, praticados e expostos para matar ócios e para aguçar a perspicácia policial dos leitores, existem apenas como imitação e elaboração romanceada de casos que poderiam, infelizmente, ter acontecido, mas, felizmente, só acontecem na fantasia. Não são, em suma, a exposição da triste realidade, como a lemos e vemos em livros, jornais e revistas, com narrações pormenorizadas de casos vividos, que deixam a humanidade consternada e perplexa. Essas descrições minuciosas e circunstanciadas como enigmas a puxar à subtileza e à argúcia, ou como charadas para desalentar a paciência de Job, reduzem-se, em última análise, a pura literatura romanesca.
Parece-me, por isso, que à existência recente deste género literário, ou desta, tendência da literatura de ficção, em livros, jornais e revistas, lhe quadra bem o adjectivo policiário recém-criado. Adapta-se perfeitamente a essa finalidade literária, e serve para separar dos temas fictícios, romanceados, confinados à literatura, o aspecto oficial, legal ou jurídico dos casos reais.
Assim diríamos: “história policiaria”, “problema policiário”, “enigma policiário”, “novela policiária”, “matéria policiária”; enfim, “literatura, policiária”, etc. Isto quanto ao adjectivo.
Quanto ao substantivo… Julgo que este deveria empregar-se, não sob a forma substantivada do adjectivo masculino (o policiário), mas sob a forma do feminino, a policiária; e englobaria a (matéria) policiária, a (técnica) policiária, a (questão) policiária, a (literatura) policiária, etc. É assim que nós empregamos, no feminino, segundo a tradição linguística, muitos outros termos de assuntos literários e científicos, provenientes de adjectivos femininos: a gramática, a técnica, a épica, a dinâmica, a acústica, a balística, a política, etc. O substantivo policiário no masculino, parece que cheira um pouco, embora não tresande muito, a francesismo (le policier). Ou talvez não.
Seja, porém, como for, eu por mim inclino-me para o adjectivo biforme, policiário a, e para o substantivo, a policiária. Mas nas coisas linguísticas, quem manda é o uso, que não a inclinação. Pode dar-se aqui também o que acontece às vezes na moda: — a extravagância e o exagero impõem-se e sobrepõem-se ao gosto

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