25 de dezembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 360

Efemérides 25 de Dezembro
Pierre Audemars (1909 – 1989)
Pierre Eugene Noel Audemars nasce em Inglaterra. Os seus romances policiários são passados em França, apresentam uma visão sombria deste país mas com sentido de humor sardónico. Pierre Audemars cria 2 séries: os mistérios de Hercule Renard, com 4 livros publicados, e os mistérios de Monsieur Pinaud com 27 romances. O autor também usa o pseudónimo Peter Hodemart.


Joe Gores (1931), MC
Joseph Nicholas Gores
EM ACTUALIZAÇÃO

TEMA — CONTO DE DOMINGOS CABRAL — O DESEJO DE MENINA
Absorta nos seus pensamentos, a mulher caminhava, apressada, quase alheia ao bulício que a rodeava. Mal se apercebia da animação, da cor, do movimento invulgar, da vida que ia por toda a cidade. As ruas repletas de pessoas, qual formigueiro em pleno labor, ofereciam o aspecto agitado e febril dos grandes dias. Pessoas apressadas, como ela, mais vagarosas outras, transportando embrulhos bonitos, coloridos, entrando e saindo dos estabelecimentos também repletos, ou admirando simplesmente as suas montras, cheias de coisas belas, tentadoras.
Ela não transportava embrulhos bonitos, nem admirava as montras. Tão pouco levava consigo aquele sentimento de satisfação que os rostos das outras pessoas deixavam transparecer. Pensava. Evocava com amargura e saudade os tempos em que também se sentira feliz, em outros Natais que a marcha inexorável da vida ia levando para um passado ainda recente mas que lhe parecia já tão distante! Tão feliz fora… Mas depois…. Sim, depois o marido morrera, vítima daquele acidente brutal e inesperado, verdadeira tragédia na sua existência, e ela ficara desamparada, minada por um desgosto intraduzível. Apagara-se aquela chama de vida, e dificuldades, nunca sonhadas, começaram a surgir. Ficara só, desoladoramente só, com a filhinha de poucos meses, a única felicidade que ainda hoje possuía — e com uma dramática perspectiva futura, desaparecido que fora quem sempre, modesta mas dignamente, assegurara a subsistência do seu lar.
Desde então a sua situação vinha sendo ingrata, a sua existência bem dura.
Vira-se na necessidade de trabalhar, de labutar arduamente para sobreviver. Para prover à manutenção do seu lar desfeito, da sua querida Paulinha.
Passara dificuldades, dias maus — e continuava a passá-los, porque o seu emprego, modesto, lhe proporcionava fracos proventos. Mas só ela, que à sua filhinha, hoje com quatro anos, nunca faltara o essencial. E por tal objectivo lutava — lutaria sempre!
A sua menina! Sorriu embevecida ao evocar a sua carita de anjo, os olhos negros profundos, vivos, emoldurados pelos belos caracóis da sua cabecita loura.
Caminhou um pouco mais e quedou-se, finalmente, junto à montra simples duma loja simples — uma montra repleta de brinquedos. Brinquedos! O encanto e o sonho da pequenada! Quantas preces ao Menino Jesus para que lhes colocasse no sapatinho as bonecas, os carros, os aviões as pistas, as bolas, os jogos, tudo, todas essas coisas tão desejadas…
Sim, a Paula, a sua Paulinha, também não deixaria de ter o seu “Menino Jesus”. Ela comprar-lhe-ia a sua prenda, a prenda que a menina, feliz e ansiosa, iria procurar no sapatinho, logo de manhã, mal acordasse.
Não podia ser coisa de vulto, claro. As dificuldades eram tantas! E como ela trabalhava para as superar! Se o marido fosse vivo seria diferente… Haveria alegria, uma Consoada ridente, como a Festa de Natal deve ser. E os brinquedos para a Paulinha seriam outros, mais valiosos, sem dúvida.
Mas ele “fora para o Céu”, “para uma grande viagem”, como dizia à filha, sempre que a sua inocente curiosidade a impelia a perguntar pelo pai que não via. Assim…
Ah, de qualquer modo ela teria brinquedos. Mais modestos, embora, mas teria. Comprar-lhe--ia uma boneca e… Não como aquela que vira, há dias, numa loja da “Baixa”, que andava, chorava, fechava os olhos e dizia “Mamã”. Não, essa era tão cara! Ainda a apreçara sonhando, mas… Custava tanto quanto ela recebia por uma semana inteirinha de trabalho! Compraria uma mais modesta. Que a sua filha não deixaria de gostar, estava certa, embora não lhe tivesse perguntado o que queria que o Menino Jesus lhe desse. Custava-lhe a admitir, mas a verdade é que procedera ostensivamente dessa forma por recear que a filha, na sua inocência, lhe pedisse algo que as suas parcas possibilidades lhe não permitissem adquirir. A tal boneca, por exemplo. E como sofreria se tal acontecesse…
Dar-lhe-ia, pois, uma boneca, uma outra boneca. E que mais? Aquele fogãozinho de plástico, com caçarolas pequeninas, vermelhas, ali ao canto da montra? Sim, e também, talvez, aquele pequeno urso de peluche, mais além. Cento e sessenta escudos? Jesus, como era caro. E o seu dinheiro tão pouco! Seria mais uma privação! Mais uma entre tantas! Compraria!
À sua volta, na loja, o movimento era desusado. A eterna magia do Natal; Quadra de Amor, Fraternidade, Compreensão. Familiares que se juntam, prendas que se trocam, corações que se aproximam. Comoveu-a aquele movimento, a agitação, o calor humano, a felicidade que se lia no rosto de todas aqueles pessoas. E o motivo que ali a levou, que comprazimento, igualmente, lhe proporcionava!
Agora também ela transporta embrulhos bonitos, coloridos. E, embora com menos dinheiro, vai mais feliz, espiritualmente mais rica. Porque, no dia seguinte, igualmente a sua menina teria um sapatinho com prendas, como as outras crianças. Tal como estas, viveria momentos de alegria. E a alegria da filha constituiria, para si, a sua prenda, a prenda a que também ela tinha direito e que corporizava, afinal, a razão da sua existência e da sua luta: a inestimável sensação de a ver feliz.

Manhã de Natal. O sol mal desponta ainda no horizonte. É a hora da alegria, da satisfação em todos os lares onde existe a suprema felicidade dum riso de criança. É a hora em que todas elas, coraçõezitos a saltitar, emotivos, se dirigem impacientes à chaminé.
Também a Paulinha fora buscar ao sapatinho as prendas do seu “Menino Jesus”. Gostara muito da boneca, do fogão e do pequeno ursinho. Abraçara as coisas e dirigira um luminoso olhar a sua mãe.
Mas não estava completamente feliz! Não era aquela expressão literalmente risonha a quem nada falta. A mãe notou-o no seu rosto pequenino, no indizível melancolismo que lhe vinha do ser, e que não sabia ocultar. Não estava enganada, não — em certas circunstâncias é bem difícil um coração de mãe enganar-se. A sua menina tinha algo, não estava feliz, como ela tanto desejava vê-la.
Se calhar não gostara. Talvez…
Ansiosa, com o coração angustiado, pressagiando uma mágoa indefinível e profunda, quis saber o que se passava no Intimo da filha. Perguntou. Insistiu. Uma, duas, três vezes.
E então, ao mesmo tempo que sentia os seus bracitos rodear-lhe o pescoço, ouviu a menina confessar, baixinho, com voz trémula, o seu desejo, o desejo que o Menino Jesus lhe não satisfizera:
— Eu queria… eu pedi ao Menino Jesus… que trouxesse o papá…

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