30 de outubro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 304

Efemérides 30 de Outubro
Rudolfo Anaya (1937)
Rudolfo Alfonso Anaya nasce em Pastura, New Mexico, EUA. Conceituado romancista, com uma extensa lista de prémios literários é especialmente reconhecido pelo facto inovador de a sua obra de ficção expressar herança mexicana-americana, a tradição do folclore e a transmissão oral de contos. Neste registo o livro do autor Ultima, La Grande é considerado uma obra-prima da Literatura. Rudolfo Anaya tem uma obra vasta: livros de não ficção e de literatura infantil e juvenil. Na área do policiário cria uma série, protagonizada por Sonny Baca, um detective privado em Chicago, natural do Novo México, que busca as raízes culturais do crime. Estão publicados nesta série: Zia Summer (1995), Rio Grande Fall (1996), Shaman Winter (1999), e Jemez Spring (2005).



TEMA — ESTUDOS DE LITERATUTRA — PERFIL DE UM ESCRITOR: MAURICE LEVEL
Por M. Constantino
De nacionalidade francesa, nascido em 29 de Agosto de 1875 e falecido a 15 de Abril de 1925, foi um admirável escritor especializado em contos de terror e fascínio. De fértil imaginação e total mestria, derramou nos seus escritos crueldade, violência e sangue em abundância, ditando finais primitivos de suspense que recordam Maupassant, mas muito mais Edgar Allan Poe do que qualquer outro escritor.
Pouco traduzido em Portugal, onde apareceu quase cem anos depois da sua publicação.

Maurice Level


UM CONTO DE MAURICE LEVEL — COLHEITA VERMELHA
Com longos golpes, lentos e rítmicos, Jean Madek enfiava a foice no trigo, e ao toque da lâmina as espigas que baloiçavam na ponta das hastes caiam suavemente com um prolongado frufru de seda.
Ele avançava, harmonizando os passos com o ritmo do braço e a terra por detrás mostrava-se escura, pintalgada aqui e ali por grupos de pedras, cobertos de raminhos de palha avermelhada.
A velha mãe seguia-o de perto, toda curvada, a juntar as espigas espalhados, e vendo os pés a arrastar os pesados tamancos, as duas mãos enrugadas e nodosas e o corpo coberto de andrajos, dir-se-ia um animal agachado sobre as quatro patas.
O sol subia no horizonte. Um calor muito forte pesava sobre tudo, envolvendo a campanha num torpor e dando à terá cultivada a aparência de um enorme fruto maduro.
Respigando activamente a velha resmungou:
— O que estará a tua mulher a fazer até estas horas? Quando virá’
— Ela vai trazer o almoço ao meio dia
A velha encolheu os ombros:
— Pelo menos não se mata a trabalhar!
— Esteja ela aqui ou na fazenda, está sempre a trabalhar.
— Ah! Trabalho daquela espécie!
Depois, como que falando consigo mesma, enquanto voltava a colher as espigas do solo:
— O patrão também não veio esta manhã. Quem sabe ficou em casa para lhe dar uma mão?
— Que queres dizer com isso?
— Eu? Nada… palavras… só para dizer alguma coisa.
Jean continuou o seu trabalho. A velha recomeçou, como se falasse para si mesma:
— O meu defunto marido jamais consentiria numa coisa destas. Quando ia para o campo não me deixava em casa a fazer companhia ao patrão.
Pela segunda vez o segador levantou a cabeça.
— Porque me falas disso?
— Dizia cá comigo que o teu pai sempre foi mais desconfiado do que tu. O filho endireitou-se sobressaltado:
— Como? Que queres insinuar? Deves ter alguma razão para falar assim.
— Se queres saber — explodiu a velha sem endireitar o busto — toda a gente fala de Céline… E os comentários não são nada bons!
— Que comentários? Está a falar de quem?
— De ninguém e… de toda a gente… E o que é mais, não se pode culpá-los por isso. Não se pode deixar de ver o que se passa diante dos nossos olhos.
— Mentiras!
Sem parecer ouvi-lo a velha afastou para um lado um torrão de terra com a ponta do pé e continuou:
— Conto-te para o teu próprio bem. Sou tua mãe e nada devo esconder. Podes zangar-te à vontade, mas já está prevenido.
— São tudo mentiras, já te disse. Céline é uma boa dona de casa, nunca se queixa do trabalho; tem tudo o que deseja. Por que me seria infiel? Porquê?
A velha fez um gesto vago:
— Sei lá! — resmungou. E mudando de tom, acrescentou — Além do mais, se falo é pelo bem de ambos. Ela é jovem, gosta de se divertir, de se vestir bem, de ir ao mercado nos sábados. A tentação por vezes assalta-nos de repente.
A voz monótona da velha prosseguiu:
— Não é dela que eu falo, é claro! Mas um marido nem sempre está presente: trabalha no campo e sai uma vez por mês para o serviço militar.
O homem já não a ouvia. Mas tinha as duas mãos cruzadas em cima da foice, os olhos perdidos ao longe; absorvera-se nas lembranças que lhe povoavam a mente. Toda a espécie de pequenos incidentes davam peso às insinuações da velha: o patrão, um conhecido libertino, duro com os que labutavam nas suas terras, mas sempre particularmente amável com ele; a coqueteria da esposa.
E de repente ocorreu-lhe que dentro de uma semana teria de partir para passar um mês inteiro com o seu regimento.
No fundo do campo, sob um conjunto de árvores, uma chamada soou e, endireitando-se, Jean Madek viu a cabeça e os ombros da esposa a emergir do dourado da planície, e alguns passos mais atrás, sacudindo o relho curto e forte por entre o trigo, o patrão de rosto corado e chapéu de abas largas.
Uma voz risonha gritou:
— Olhem o almoço!
Um por um os trabalhadores saíram do trigal e sentaram-se à sombra das árvores, a comer a refeição.
Jean sentou-se em silêncio, cortando lentamente o pão preto em pequenos pedaços.
— Por que estás tão quieto, Madek? — perguntou o patrão.
— Estás doente? — inquiriu á esposa.
— Não, mas o sol está a queimar. Deve estar melhor lá dentro de casa.
O patrão rompeu numa gargalhada.
— Não há dúvida!
Terminado o repasto, todos se estiraram para uma soneca. Recomeçariam. o trabalho quando o sol tivesse perdido um pouco do seu ardor. Madek não dormiu. Deitado de bruços, o queixo apoiado nas mãos, ficou perdido nos seus pensamentos.
Quando bateram as duas, os homens levantaram-se voltando ao campo, e mais uma vez, sobre o dourado das espigas que nenhuma brisa agitava, ouviu-se o ruído do ritmado das foices.
Assim que todos retomaram o trabalho, o patrão estirou-se lentamente e numa voz repassada de sono gritou para a mulher de Madek:
— Escuta, Céline. Por acaso trouxeste uma agulha contigo?
— Sim, patrão.
— Então vem dar uns pontos na minha camisa. As vacas estão no pasto. Há tempo de sobra até a hora de ires buscá-las. O sol vai alto, faz muito calor agora. Vou lá para debaixo da macieira. Vai ter comigo assim que acabares de enfeixar o teu molho. Mas vais pela estrada, a fim de não bater os grãos.
Sorriram dissimuladamente um para o outro. Mas Madek que os observava viu tudo. Fez um movimento como que para falar, mas depois baixou a cabeça e continuou a segar.
A velha fora-se embora. Era agora a esposa quem o seguia. Assim que enfeixou o molho, ele observou sem se voltar:
— Não ouviste o que o patrão te disse?
— Sim, ouvi.
— Que esperas, então?
— Já vou…
Prendeu o cabelo que se soltara enquanto estivera abaixada. As duas mãos apoiadas nas ancas, os seios arfando sob o «corpete de cor viva, lá se foi ela com uma flor apertada entre os dentes.
O. marido ficou a vê-la perder-se entre a verdura como alguém engolido pelo mar, e assim que desapareceu por completo na sombra da macieira, que se interpunha no horizonte, ele voltou outra vez ao trabalho.
Os movimentos haviam perdido o abandono da manhã. Avançava aos arrancos, parando de repente e recomeçando outra vez, cabeça baixa, maxilares apertados, uma ruga feia entre as sobrancelhas.
A princípio guardara certas dúvidas; seguira-se a certeza fortalecida pelo incidente que surpreendera não fazia muito. Ao avançar parecia ver a mulher e o patrão às risadas e aos beijos, à sombra da macieira.
E avançava sempre atirando o peso do corpo nos braços. Atrás dele as espigas amontoavam-se e o campo cultivado que a sua foice devorava diminuía a olhos vistos. Jamais no primeiro vigor da juventude trabalhara daquela maneira.
Lá de longe um companheiro gritou:
— Pretendes cortar tudo hoje?
Sem levantar os olhos, respondeu:
— Talvez. Quando se achava apenas a alguns passos da macieira, parou a ouvir atentamente; um leve murmúrio lhe chegou aos ouvidos. Uma voz, a voz de sua mulher, que dizia:
— Não… ele pode ver-nos.
E outra voz mais forte a replicar:
— Fica quieta! Ele está do outro lado campo. Leva mais de meia hora para chegar aqui. Vem para mais perto!
Durante alguns segundos ele imobilizou-se como que transfigurado, lívido sob o queimado de sol; depois com um vivo gesto de decisão, continuou a segar. Mas diminuíra o ímpeto do avanço. Os golpes da foice eram quase silenciosos. O trigo caía no solo sem um som. Quando se viu quase debaixo da árvore, ouviu o ruído de beijos. Erguendo o corpo inteiramente, num gesto fúria levantou a foice cuja lâmina cintilou muito branca ao sol. Depois desceu-a mergulhando-a às cegas… Dois gritos horríveis cortaram o silêncio, e duas coisas pavorosas, duas cabeças, saltaram no ar e tornaram a cair, separando as hastes douradas que se quebraram com um leve ruído.
A foice saiu do meio do trigal, vermelha de sangue.
Madek atirou-a longe, e sacudindo no ar as mãos ensanguentadas, trovejou:
— Socorro! Um acidente. Eles estavam ali!



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