27 de outubro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 301

Efemérides 27 de Outubro
Frances Crane (1896 - 1981)
Frances Kirkwood nasce em Lawrenceville, Illinois, EUA. Começa por escrever artigos no jornal The New Yorker — assina com o nome de casada Frances Crane. No final da década de 30 vive na Alemanha de onde acaba por ser expulsa devido às suas posições políticas. Divorcia-se e inicia-se na escrita policiária por necessidades económicas; casa com o escritor Norbert Davis — CALEIDOSCÓPIO 109 (Clicar). Inspirada por um acontecimento real, um assalto a uma joalharia, publica o primeiro romance em 1941 The Turqouise Shop, protagonizado por Pat Abbott e pela sua futura mulher, Jean. Em 26 romances da autora os Abbotts, uma dupla de detectives privados, desvendam crimes / mistérios entre 1941 e 1965; curiosamente cada um dos livros desta série tem uma cor no título. Frances Crane escreve ainda os romances Em Portugal The Reluctant Sleuth (1961), Three Days In Hong Kong (1965), A Very Quiet Murder (1966) e Worse Than A Crime (1968). Em Portugal está editado:
1 - Três Dias Em Hong-Kong (1968), Nº146 Colecção Grandes Mistérios, Edições Romano Torres. Título Original: Three Days In Hong Kong (1965).~



TEMA — SOCIEDADE — SE A ESPERANÇA MORRESSE
Por M. Constantino
Já não tenho esperança — ouve-se aqui e ali — mas aquele que o diz, aquele que, provavelmente, terá perdido a perseverança, a dedicação, a coragem para reagir ao naufrágio de todos os seus empenhos e ideais, num recanto escondido do seu íntimo, conserva ainda despojos sempre prontos a reavivar ao mais pequeno sopro, qual Fénix, a que imortal renascendo sempre das próprias cinzas.
Só o homem é capaz de esperar, porque, ser limitado e inteligente que é, jamais se acomoda à sua fronteira terrena; no ter, no ser, no viver, é constante a luta para se libertar dessa barreira, já que a esperança é um sentimento de tal modo profundo, que na sensação do confronto é como que a certeza da realização. Ter esperança é ter confiança.
A esperança é a varinha mágica de sábio, o ânimo do homem que trabalha, o engano de presunçoso e indolente, o lenitivo na dor, a promessa dos olhos que choram e do coração que padece, a riqueza de quem nada tem materialmente…
São muitas as esperanças que alimentam a vida de todos os dias, incertos e falíveis, é certo, porque não dependem apenas da vontade de quem espera, mas juntamente das circunstâncias várias e interesses alheios; nascem, nuvens em forma de sonho realizável cujos elementos constitutivos são a resolução inabalável do querer, a fé interior; e abre-se a horizontes ilimitados e a futuros e possibilidades imprevisíveis.
A esperança é a arma permanente ao nosso alcance: não há derrotas que não possam transformar-se em vitórias, não há desilusões que não possam ser passageiras, não há infortúnios sofridos que o apoio da força da esperança não mitigue ou vença… em tudo e para tudo, com excepção do incerto e derradeiro acto, há um novo amanhã… um horizonte de luz.
A esperança é absolutamente inseparável das realidades da vida e da força interior que nos sustenta em qualquer momento da capacidade de se opor a dúvidas e tentações sob pena de vermos naufragar ideias, fraquejar e ameaçar a nossa paz interior. Cada vez que o homem entra em desespero está a denunciar a sua impreparação, a antecipar levianamente a fragilidade da fé na esperança, a desfazer a plenitude do êxito ou felicidade só ao futuro reservada: Não podemos ter o que queremos no momento em que queremos.
A esperança humana afirma-se sob a acção vigilante da vontade imanente, virtude que mantém intacta através das contingências e vicissitudes da vida, a capacidade de sempre poder esperar mesmo contra toda a perspectivada impossibilidade.
Ao longo da terrena caminhada, às demoras, paragens necessárias: sombras que são benfazejas — aproveitai-as; água que é reconfortante — bebei-a; montanha ou abismo que vos vede — ultrapassai-os; mas o caminho deve prosseguir, a marcha impõe-se, a esperança aliviar-vos-á os passes.
A esperança não morre… deixa-nos à beira da sepultura, como a última e a mais fiel companheira.
Se a esperança morresse…
… o mundo seria aridez.
… revolvida pela tempestade do desalento…

TEMA — CONTO POLICIÁRIO NACIONAL — AJUSTE DE CONTAS
De Severina Fortes
Feliz pelo agrado que, a sua actuação despertara, Lucília sorria, ainda graciosa apesar de quase quarentona, segurando nos braços dois caniches e agradecendo reconhecida as palmas prolongadas do Público a darem-lhe tempo para apreciar o movimento rítmico das mãos a branquejar no gesto de aplaudir, contrastando com o fundo confuso, feito de meios tons.
A casa estava cheia. Envolvida pelo calor humano a artista vibrava atingindo o sentido do seu amor ao circo e o porquê de só nele se sentir bem, presa na magia dum encantamento. Maravilhava-a participar e exibir-se sob o efeito das luzes que realçavam os trajes escolhidos segundo a fantasia de cada qual; mas prestava verdadeira adoração à presença da massa indistinta de gente, à mistura heterogénea que reunia adultos e crianças de alma aberta ao riso, procurando a alegria e o sonho de mãos dadas, voltadas para o mesmo lado especial da vida.
Ao sair da pista, já no corredor de acesso aos camarins, ia contente pela própria coragem de se assumir e voltar a actuar no seu país. Queria sacudir o passado, pôr fim à inquietação que lhe ensombrava os dias — ainda mais as noites - dizendo “Basta!”. Cansara-se de ter medo, de se esconder atrás doutro nome, doutra nacionalidade, noutra terra. Precisava arrancar a garra do remorso por um crime hediondo, sim, mas que não cometera. Somente — e era tanto — anuíra calar, levada pelo estouvamento da idade, na miragem da promessa de amor que fora breve, paraíso ilusório tornado inferno.
Na euforia da conseguida emancipação moral — discutível, mas tão desejada — sentia-se feminina e leve no belo fato azul turquesa marchetado a prata que lhe adelgaçava a linha, evocando a esbelteza de outrora. Via-se remoçada, de tal modo que se atrevera a pôr a peruca de cabelo louro, comprido e liso, como usara na mocidade, a ressaltar a tiara prateada, sem lhe ocorrer como se assemelhava demasiado à jovem Lili, certa noite desaparecida e dada como morta, num fim trágico horrível.
Foi apenas ao inclinar-se para ajudar os cães a saltarem-lhe do colo, que viu Alberto Kurt à sua espera, reconhecendo-o de chofre, de todo desprevenida.
No impacto da surpresa, desmascarou-se.
Recuou precipitadamente não querendo encontrá-lo, desejando sumir-se, ou não ser ela quem estava ali. Gemeu como animal ferido ao julgar encontrar no fulgor do olhar dele a acusação directa pela sua cumplicidade no crime, por todo o mal que fizera para lhe fugir de vez, incapaz de se desmentir, fosse no que fosse. E ao ver a arma aparecer-lhe na mão adivinhou o termo dos seus dias e deu um grito gutural, alucinada pelo pavor que lhe apertava a nuca, com mão gelada, enquanto intensa contracção nervosa lhe arrepanhava o dorso, paralisando-a.
Nos breves instantes, em que Lucília deixara transparecer de forma tão clara a sua consciência pecadora, pela mente de Alberto Kurt desfilaram anos de tormento e mágoa, penando injustamente a morte daquela mulher.
Sentiu-se enojado por haver chorado a sua perda, e logrado por ter querido vingá-la, quando tinha sido ela a causadora do mal que o perseguia. Percebeu, arrependido, como fora louco ao casar com uma adolescente, sendo já homem maduro. Como se enganara!
Todavia não a obrigara, pelo contrário - Lili parecia adorá-lo! Talvez o artista e não o homem… Mas quisera acreditar nela: percebia agora que no íntimo gostar de acreditar. Sempre! Mesmo ao encontrá-la de novo estava pronto a crer, porque no fundo o amor é persistente, e ainda a amava!
Mas, de alma crispada, reconheceu a razão que instintivamente lhe assistira ao acusá-la de ser amante de Fred, o ilusionista. Como havia sido crédulo em não ter acreditado verdadeiramente…Só hoje lhe caía a venda dos olhos e podia ver aquilo que todos sabiam, no fim de contas. Corou de vergonha pelo riso que despertara ao gritar-lhe ameaças terríveis, lançadas para amedrontá-la, de todo incapaz de as concretizar.
Era lá possível lançá-la às feras…
Porém, não tinham rido ao apontá-lo como criminoso! E foram essas ameaças a base para a punição, ao ser considerado assassino, e condenado!
Perdera a liberdade até ao momento final da sentença, até ao instante em que o atiraram à rua — como se o houvessem alojado a título de favor e agora tivessem pressa de se verem livres dele.
Ficara só, atordoado, numa vida que desaprendera de viver. Agarrara-se ao desejo de vingança, à busca do verdadeiro culpado. Apenas essa vontade foi a amarra sólida que o prendera à vida e o ajudou a sobreviver.
Frequentava os circos. Procurava indícios, acreditando neles, disposto ao desforço, custasse o que custasse, confortado com o uso da arma que comprara na rua, a um qualquer, pronta a ser usada na altura precisa.
Então, quando já por vezes uma ponta de desespero se lhe insinuava, a querer mostrar-lhe as dificuldades da sua teimosia, minando-lhe o ânimo, ao assistir ao primeiro espectáculo da nova companhia circense, reconheceu a mulher julgada morta, actuando num número com os seus cães, usando até o mesmo estilo de fantasia.
Num espanto, tornado um pesadelo, perguntava-se:”Quem morreu?”
Nos escassos restos sobrados do sangrento repasto que alguém, matreiramente, oferecera aos cinco tigres (de que era domador), tendo ficado pedaços duma fantasia parecida com aquela que via agora na arena, e pertencente a Lili, fazendo crer a todos ser ela a vítima.

A enormidade da culpa dela explodiu-lhe no espírito, surpreendendo-o por inesperada. Se não morrera, como se pensara, onde estava nessa altura e porque não voltara para o ilibar?
Por uma vontade mais forte que a sua, desceu aos corredores do circo, ávido dum engano, querendo ver de perto a artista, desejando ardente mente encontrar uma estranha!
Esperou-a, mostrando-se abertamente, ansioso, pronto a duvidar e, quem sabe? a perdoar…
Desgraçadamente, ao ver-se reconhecido, teve a certeza que não queria — soube a verdade da sua desgraça!
Uma raiva surda o tomou, impelindo-o a vingar algo que não podia discernir bem: quer a sua vida truncada, a traição em troca de dedicação e amor, a desgraçada que morrera no seu lugar (atraída a um fim medonho), os seus tigres mortos imediatamente em retaliação (animais que domara laboriosamente e eram o seu ganha pão e estima), ou talvez só o recuo instintivo e depreciativo de Lucília, ao vê-lo!
Ah! Mas estava a tempo! Tinha-a à sua mercê…
Não lhe importava o que lhe sucedesse depois! Já passara por tudo, até mesmo os olhares hostis de gente curiosa, do mesmo bairro, e pronta a atirar a primeira pedra. Mas acusações, isso não…
A sentença tinha sido cumprida.
Como quem se liberta dum pesado fardo ao chegar ao fim do caminho Alberto Kurt reagiu e disparou a arma, sem mais considerações, não deixando de atirar enquanto teve balas no carregador.
Lucília caía, ferida da morte que não esperava, sacudida pela impulsão dos impactos, enrodilhada no belo fato que a denunciara -agora um trapo sujo e sem forma, esburacado e a empapar-se em sangue vivo como um berro obsceno…
Lá atrás, no anfiteatro, onde continuava o espectáculo, troava uma ovação que abafou o som dos tiros.

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