13 de outubro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 287

Efemérides 13 de Outubro
Jan Costin Wagner (1972)
Nasce em Langem, Alemanha. Formado em literatura alemã e história trabalha como jornalista e músico, mas escreve também romances policiários. Publica o primeiro livro em 2002 — Nachtfahrt (Viagem Nocturna, em tradução literal) e ganha o Marlowe Prize, um prémio alemão que distingue a literatura policiária. Seguem-se mais 5 romances, traduzidos em 14 linguas e com vários prémios em diferentes paises; Tem um livro Das Schweigen (2007) adaptado a filme . O autor, que vive ora na Alemanha, ora na Filândia, situa os seus romances neste país e o seu protagonista é o detective Kimmo Joentaa.



TEMA — CRÓNICAS DO PASSADO — TRAGÉDIA MEXICANA
De Repórter X
Sôr Concepcion é um. enigma—e u m tema de estudo. Todas as virtudes e defeitos de uma mulher inteligente, abrigada dentro dum hábito de monja, e acelerada por um fanatismo que em vez -de ser de amor — é de ódio. A polícia mexicana, todos os juízes, todos os esbirros, todos os chercheurs de secrets que foram assolados para a descoberta do emaranhado mistério que cercou o atentado — não conseguiram atinar com a fechadura daquele cofre humano. Qual a sua intervenção exacta no crime? Qual a sua influencia no espírito do criminoso? Qual o seu papel no enorme complot romano contra a politica de Calles?
Adivinha-se, por toda a parte, sem uma hesitação, a sua acção feminina — na preparação maquiavélica do assassino; na longa hipnose que levou Toral ao atentado; na mecânica habilíssima de toda a conspiração… Mas se ela esteve influentemente em todos os lados, em todos os subterrâneos da conjura, na própria alma de Toral — não deixou vestígio: um rato de hotel, usando o maillot negro de Fantomas, os sapatos de cautchout, não seria mais subtil, mais silencioso, não agiria com maior cautela… Sôr Concepcion é uma sombra — com inteligência máscula; é uma beleza ofuscada em negro; é uma alma cheia de amor e de ódio… Prepara, organiza, inflama, conduz — e ninguém a viu; e ninguém a notou; e ninguém a acusa; e ninguém a encontra…
Estranha mulher — essa mulher que despojou Jesus Cristo! Desprendeu-se de todos os elásticos que a prendiam à terra — mas conhece bem a vida, terrena e a alma dos homens e joga com estes conhecimentos com o génio de um jogador de xadrez afamado. É Lucrécia Bórgia, defendendo Deus; Jeane d'Arc das trevas sacudida por uma tempestade de ódio…
Estranha! Curiosamente estranha! E onde precisamente o seu mistério, o segredo do seu poderio atinge proporções estonteadoras — é na sua focagem directa no atentado contra Obregon; é na projecção da sua sombra decisiva na alma de Toral.
Toral era um crente — mas não um fanático. Toral era um adversário de Obregon — mas não um assassino. De que bruxedos se serviria Sôr Concepcion para transformá-lo num criminoso? Que filtros lhe daria a beber para transformar em coragem a timidez, em heroísmo o medo, em espírito de sacrifício a calma comodista? Agitando convulsivamente o nome de Cristo? Não é crível! Cristo, quando beija uma alma, só lhe pode inspirar o bem… Ou teria Sôr Concepcion, num esforço supremo de fé, num sacrifício sublime embora cruel obrigado Toral a cegar-se no esplendor da sua beleza humana — para o arrastar ao fanatismo espiritual do assassinato? »
Havia uma insinuação… Na entrevista do Excelsior lê-se: “Toral fala de Sõr Concepcion com ardor e respeito; com estrelas no olhar esgazeado e com soluços na voz”. E mais adiante “Seria verdade, como imaginou Ruben Dario, que Cristo e judas se encontraram no mesmo amor a Maria Madalena — amor que no peito de filho de Deus era só piedade e no do traidor ciúme torvo e peçonhento?”…
Grande, enorme amor por Cristo — deve ser o que guia Sôr Concepcion na sua obra revolucionária e no seu sacrifício indiferente… Mas Cristo não lhe corresponde, pela certa, ao seu amor. O amor de Cristo ensina só amor — não ensina o ódio, não permite o crime…



TEMA — FICÇÃO CIENTÍFICA NACIONAL — A MUTAÇÃO
De Filipa Gonçalo

NOTA: O presente conto, que consideramos uma mais-valia no parco panorama de Ficção Científica Portuguesa, foi publicado há muitos anos num jornal diário nacional já extinto. Na altura, foi escolhido para fazer parte de um projecto de uma Antologia de Ficção Científica Portuguesa e encetámos diligências junto do jornal para entrarmos em contacto com a autora, em vão, pelo que desconhecemos tudo o que importaria sobre a sua identidade, Se nos ler, perdoe o abuso da utilização do conto no Policiário de Bolso, pois não passa de uma homenagem breve, mas muito sincera.
O tempo passou e com ele o projecto da Antologia.
Fizemos uma alusão ao conto no CALEIDOSCÓPIO 192 (Clicar), o que despertou a atenção do nosso “velho” amigo Álvaro Holstein. Este é o resultado de meses de buscas entre milhares de papéis dispersos e na memória, um desafio com êxito.
Aqui fica, Álvaro, com um abraço.
M. Constantino


Naquela noite, Ana, acariciando-o cheia de ternura, como uma mãe que se separa do filho já crescido mas a quem conhece a surpresa, a confusão, a angústia, fixando-o com os seus grandes olhos negros muito vivos, muito abertos, sempre prontos a surpreenderem-se e a sorrir explicou-lhe tudo.
Pediu-lhe para se sentar, encostar a cabeça nas suas coxas e, como uma ama que contasse uma história de fadas, enrolando o cabelo dele nos seus dedos macios, começou:
— Tenho tanto para te dizer João. Coisas que sei te irão magoar muito. De tal modo o sinto que este é um dos momentos mais difíceis da minha longa e estranha vida. Apetece-me chorar porque tudo é irreversível e este momento não pode ser adiado nem se repetirá. Esta é implacavelmente a altura própria. Por isso te peço que não me interrompas apesar da surpresa e do desgosto que te vou causar.
Amo-te muito. Contigo, com o teu amor, com a beleza, a ternura, o desejo, o conforto, e a segurança que partilhamos, mesmo durante os nossos desacordos, descobri o sabor das emoções, o verdadeiro sabor de se ser humano, algo que me era por completo desconhecido e até, a princípio, assustador.
Lembras-te, do modo peculiar, quase diria irreal, como nos conhecemos? Ainda hoje me interrogo sobre o que em mim te atraiu. É certo que sou bonita, inteligente, culta, mas é igualmente certo que, naqueles primeiros tempos, era excessivamente lógica, inflexivelmente lúcida, inalteravelmente segura. Quase um “robot”.
Do meu passado, ainda hoje pouco sabes. Conheceste-me só e só permaneci ao longo destes 10 anos. Não tenho pais, não tenho irmãos nem parentes, não tenho amigos, senão aqueles que através de ti criei e com quem consegui estabelecer relações cheias de significado, apesar de inicialmente muito temerosas e hesitantes.
Foi a partir de ti, rodeada pelo teu amor e pela tua protecção que me integrei, aprendi a viver, a sentir, a esperar. Tornei-me, pelo menos em parte, igual a vós. Nenhuma viagem é impune.
Nunca esperei que a minha decisão ao escolher-te fosse tão acertada. A tua abertura, a tua segura maturidade, a tua alegria rodearam-me de bem-estar e de segurança que em muito tranquilizam os meus medos relativamente ao futuro dos nossos filhos.
Espera! Ainda está quase tudo por dizer. Até agora, para meu alívio, apenas te quis mostrar, muito incompletamente, aquilo que significas para mim.
Tu, João, porque és tantas vezes inocente, nem sempre te apercebes da mesquinhez, da inveja, dos ódios que nos rodeiam e a toda a hora impedem ou destorcem os nossos anseios, os nossos sonhos, as nossas iniciativas.
Esse magnífico instrumento de raciocínio que o Universo e o Tempo nos ofereceram, o cérebro, está na maior parte dos casos, limitado, embotado, enraivecido por toda a espécie de negativismos que queiras imaginar e que tolhem o verdadeiro crescimento do Homem, da Natureza, da inteligência, dos sentimentos, da harmonia.
Se se tratasse apenas de deficiências provocadas por erros de educação, tudo seria mais fácil. Existem hoje conhecimentos que a breve prazo permitirão corrigir muitos dos erros que há séculos se cometeram, prejudicando irremediavelmente o desenvolvimento das nossas crianças.
O problema está precisamente no facto de estes erros se repetirem de geração em geração há vários milhares de anos. Inexoravelmente, como um fatalismo, as suas consequências afligem a Humanidade desde sempre. Mas, se inicialmente essas consequências se manifestavam ao nível psicológico e social, no longo do tempo, a repetição inscreveu-as no próprio nível biológico, bioquímico. As crianças do nosso século, marcadas por séculos de violência e de morte, transportam no seu património genético os genes do ódio, do preconceito, do medo. Este horror significa a impossibilidade de libertação do Homem, a menos que se tomem medidas preventivas, uma certa forma de vacinação que, impedindo a acção destes genes da perturbação, liberte as riquíssimas potencialidades do nosso cérebro.
Foi exactamente para realizar isso que eu e milhares de outras mulheres, há cerca de 10 anos, percorremos milhões de quilómetros, distâncias para ti inimagináveis a velocidades para ti inconcebíveis, até atingirmos este planeta.
Quando chegámos, dispersámo-nos por todo o mundo. Havíamos tornado a vossa forma partir de modelos. Havíamos aprendido as línguas mais importantes. Tínhamos estudado e adquirido muitos dos vossos hábitos. Estudáramos o vosso sistema de troca, por símbolos monetários que, embora engenhoso, achei complexíssimo. Especialmente cuidada foi a nossa preparação para as relações entre homens e mulheres e a sua formalização no estranho hábito do casamento, cujas descrições e simulações foram por vezes tão assustadoras que o assunto se tornou para mim uma verdadeira obsessão. Daí os meus medos iniciais que tu tão bem soubeste desfazer apesar da estranheza que frequentemente te provocaram.
Por favor! Fica assim, deitado. Ao acariciar-te será para mim muito mais fácil continuar.
A nossa missão era repovoar este planeta. Tínhamos de nos integrar, formar famílias e dar origem a uma nova geração nascida dos nossos corpos; especialmente preparados para inibir os genes da incapacidade e potenciar os genes da inteligência, da lógica, da imaginação.
Neste momento esse trabalho este feito. Milhões de crianças vivem hoje espalhadas por todo o mundo, cujos códigos genéticos sofreram esta mutação.
Por mim, tenho três filhos da nova geração, a quem adoro, ainda que este sentimento não estivesse previsto.
Henrique com os seus nove anos é, como sabes, um génio.
A Cibernética não tem segredos para ele. Apesar da idade, consegue atingir níveis de abstracção quase cósmica. A sua capacidade de trabalho é espantosa e a sua memória é infalivelmente rica, variada, profunda e rápida.
A Teresa, aos sete anos, domina a moderna Física de modo a espantar os peritos mais conhecidos. Os seus escritos sobro o entropia e as alternativas energéticas são revolucionárias e demonstram uma compreensão sistemática do fenómeno e um nível de globalização nunca antes atingido.
O Ricardo, com os seus alegres quatro anos, interessa-se e conhece em pormenor a história o filogénese da célula nervosa sobre cuja fisiologia apresentou teorias cheias da imaginação que abrem riquíssimas linhas de investigação.
Temos, em suma, três filhos alegres, saudáveis, inteligentes, que atingiram níveis de abstracção normais pare a sua idade, tendo em conta a sua constituição genética, a riqueza das suas estruturas associativas e potência das suas capacidades intelectuais. Ao contrário do que vocês supõem não são crianças superdotadas. São crianças humanas normais que diferem das outras apenas porque, sem medos, sem limites, utilizam plenamente as magníficas potencialidades dos seus cérebros.
Surgiu no entanto um problema que não tínhamos previsto. A libertação das capacidades lógicas do cérebro foi acompanhada por uma extrema e apurada sensibilidade. Os nossos filhos, sabe-lo bem, são tão sensíveis quanto inteligentes. Por isso qualquer nova descoberta enche-os de alegria. Por isso a beleza os emociona intensamente. Por isso a injustiça e ignomínia os revoltam. Por isso o amor os enche de segurança e a miséria os aflige. Por isso são ternos e, sendo-o, necessitam também de muita ternura.
E é por tudo isto, meu amor, que, findo a minha missão, na hora de regressar, confiadamente te passo a tarefa de os criares rodeados de carinho, beleza, justiça, alegria, tolerância. Só te peço que sejas com eles o que sempre foste comigo. Eles agradecer-te-ão utilizando toda a sua Inteligência e toda a sua sensibilidade para a criação de um novo homem, como eu agora, antes de partir te quero agradecer teres criado em mim uma nova mulher.
Perguntar-me-ás porquê, em dez anos de vida em comum, cheia de compreensão e de confiança, não te disse tudo quanto agora te descrevi… É que, amor, no fundo não sou humana…
E como se fosse mágica, chama ou fumo, lenta e ténue, esvaneceu-se em filamentos de luz, de cujas carícias ele não sentiu mais do que um breve e morno afago.

1 comentário:

  1. Caro amigo Constantino, só hoje "dei" com este post e agradeço o trabalho de o procurares e divulgar. Vai para o "arquivo". Obrigado e até um dia destes. Abraço, Álvaro

    ResponderEliminar