22 de setembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 266

Efemérides 22 de Setembro
Herbert Lieberman (1933)
Herbert Henry Lieberman nasce em New Rochelle, New york, EUA. Dramaturgo e escritor, com 14 romances policiários publicados. O livro City Of The Dead (1976) recebe em 1977 o Grand Prix de Littérature Policière para melhor romance estrangeiro. Em Portugal esta editado:
1 – O Expresso Verde (1989), Nº23 Colecção Não Incomode, Editora Gradiva. Título Original The Green Train (1986).


TEMA — BREVE HISTÓRIA DA NARRATIVA POLICIÁRIA — 21
Continuação de CALEIDOSCÓPIO 251 (clicar)
A influência de Vidocq irá rever-se em Jean Valjean, o forçado evadido, e Javert, o seu perseguidor, de “Les Misérables”, de Victor Hugo, passando pelos “Mystères de Paris” de Eugène de Sue, “Les Mystères de Londres”, de Paul Féval ou “Les Mohicans de Paris”, de Alexandre Dumas, com o seu inspector Jackal um reinado de folhetins que estão em moda, mas será com Honoré de Balzac (1799 - 1850), que atingiu toda a plenitude.

Balzac representa um elo notável para a estrutura da narrativa policiaria, ainda que, em princípio, a, sua predilecção seja para personagens heróis criminosos e marginais, ou não fora amigo íntimo do celebérrimo Vidocq, do qual ouvia histórias e, por vezes, intrigas.
Em “Argon, le Pirate” (1824), “Le Vicaire des Ardennes” (1822) e “Ferragus” (1833) os personagens terão algo de Vidocq e as historias a influência directa de Causas Célebres de “Newgate Calendar” porém, Vidocq distingue-se excepcionalmente no Vautrin de “Le Pére Goriot” (1834) em Carlos Herrera, o padre espanhol encarregado de uma missão ao serviço do rei de Espanha para Luis XVIII em “Illusions Perdues” (1837 - 1843) mantendo-se Vautrin no decorrer do ciclo da “Çomédie Humaine”, para em “La Dernière Incarnation de Vautrin” (1847) desvendar a sua verdadeira face de Jacques Collin.
Antigo forçado, uma vida cheia de aventuras, primeiro ladrão, depois espião, por fim Comissário de Polícia o itinerário de Collin e paralelo ao de Vidocq. Mesmo na semelhança física: Collin tem ombros largos, o busto e músculos bem desenvolvidos mãos grossas, quadradas. Vidocq, como modelo, foi na realidade um forçado evadido, terá grande experiência do crime e acabará por ocupar alta posição na polícia parisiense. Se diferenças existem entre Collin – Herrera – Vautrin - Vidocq, são características psicológicas, já que Balzac não deixaria de enriquecer o seu herói — o poder quase magnético que exerce sobre os seres humanos, porventura os mais fracos, que lhe permitem dominá-lo usando um certo encanto demoníaco e arrogante, um espírito perverso — mas bem organizado, como uma máquina sobre-humana debaixo de uma “sede de justiça” incontrolável.
Mas Balzac construiu igualmente heróis não criminosos. Em “Maître Cornélius”, um conto de 1831, relata-nos uma verdadeira história de feição policial, na qual Luís XI, de França, figura como um autêntico detective, ainda que não tenha a consciência de que e a dedução, indução ou intuição; reúne fios dispersos que compõem a trama e tira as necessárias conclusões.

… a última casa daquela rua era também a última da cidade e pertencia a mestre Cornelius Hoogwirst, um velho negociante encarregado dos negócios do rei Luís XI, efectuados às margens das leis. Era um dos comerciantes mais ricos de Gante, que após atrair a inimizade de Carlos, Duque de Borgonha, encontrará asilo e protecção em Luís XI que, entretanto, obtinha as vantagens que podia do relacionamento com tal homem. Vivia só com uma irmã, que nunca saía de casa e, quando ocasionalmente servidores logravam entrar na sua casa, eram invariavelmente acusados de roubar Cornelius que, além de astuto e desconfiado era extremamente avaro. Mais de um jovem pagara pela acusação de roubo.
Um dia em que um jovem, com quem o rei simpatizara por influência da sua própria filha, estava nas mãos dos inquisidores, acusado de roubar Cornelius, Luís XI dirigiu-se a casa do avarento, a quem disse:
— Tenho tão bom olfacto, que aposto dez mil escudos em como encontrarei o ladrão.
— Encontre-o, Senhor, e não apostemos — disse Cornelius cioso do dinheiro.
Dirigiram-se imediatamente ao gabinete onde o homem havia depositado os seus tesouros. Uma vez ali, Luís XI fê-lo mostrar primeiro a arca onde estavam as jóias roubadas e de seguida a chaminé pela qual teria de descer o suposto ladrão. Não foi difícil convencer o Pombardo do erro da sua suposição, já que não havia o menor rasto de fuligem no local, no qual, a dizer a verdade, raras vezes se acendia lume; nenhuma pegada ou rasto de deslizamento pelo cano da chaminé que, aliás, nascia em lugar quase inacessível do telhado. Finalmente, depois de duas horas de pesquisa que tinham a marca da sagacidade que distinguia o génio desconfiado de Luís XI, ficou demonstrado até à saciedade que ninguém poderia ter-se introduzido na sala do tesouro. Não havia um só vestígio de arrombamento nem no interior nem no exterior das fechaduras, nem nos cofres de ferro onde se encontrava o ouro, a prata e pedras preciosas acumuladas pelo rico avarento.
— Se o ladrão abriu essa arca — disse Luís XI — porque não levou mais do que as jóias da Baviera? Porque motivo escolheu esse colar de pérolas? Estranho ladrão.
Ante aquela reflexão, o prestamista empalideceu; o rei e ele olharam-se em silêncio por instantes.
— Então que veio fazer aqui o ladrão, que tomaste sob protecção, e que se passeou pelos telhados durante a noite? — inquiriu finalmente Cornelius.
— Se não o adivinhais, meu amigo, ordeno-te que o ignores sempre: é um dos meus segredos.
— Então o diabo anda solto em minha casa — gemeu o avaro.
Em qualquer outra circunstância, o rei teria rido da saída do prestamista; no entanto o monarca ficou pensativo, e dirigia a Cornelius miradas penetrantes tão familiares a homens de talento e de poder…
— Anjo ou demónio — exclamou bruscamente Luís XI — apanharei os ladrões. Se esta noite te roubarem, amanhã saberei quem é o ladrão. Chama essa bruxa a que chamas irmã.
Cornelius quase vacilou ao deixar o Rei só no quarto onde estavam os seus tesouros; porém, saiu, vencido pela potência do sorriso de troça que viu nos lábios de Luís XI. No entanto, apesar da confiança, regressou imediatamente seguido da velha.
— Tens farinha? — perguntou o rei.
— Tenho, sim. — respondeu a velha. Temo-la guardada para o inverno.
— Vai buscá-la — ordenou o rei.
— Que quereis fazer com a nossa farinha, Senhor? — disse a velha, esquecendo o respeito devido a sua majestade real.
— Velha louca! Limita-te a cumprir as ordens do nosso senhor! — gritou Cornelius. — O Rei necessita de farinha!
A velha foi-se resmungando e voltou com meio saco de farinha que mostrou ao Rei. -— Custa sete soldos…
— Não importa -replicou o Rei. — Espalha-a sobre o piso, mas procura que fique bem repartida, como se estivesse nevando.
A anciã ficou de boca aberta, assombrada.
— Mas, Senhor, a minha farinha no chão? Mas…
Mestre Cornelius que começara a compreender, ainda que vagamente, as intenções do Rei, tirou-lhe o saco e começou a espalhar a farinha pelo gabinete desde o fundo até à porta, onde já estava o Rei, que se divertia com tal operação. Quando a farinha chegou à porta, Luís XI perguntou:
— Há duas chaves da fechadura?
— Não, Majestade.
O Rei examinou o mecanismo da porta, protegida por chapas de ferro, mandou que Cornelius fechasse bem a porta. Depois de observar tudo, Luís XI chamou Tristão e ordenou-lhe que em segredo escondesse alguns homens nos muros e nos telhados e que voltasse ao palácio com a escolta a fim de fazer crer que nada ficaria na casa de Cornelius. Por outro lado recomendou ao avarento que fechasse com cuidado todas as janelas de modo a não se ver luz da parte de fora e que lhe preparassem uma ceia frugal, com o objectivo de fazer acreditar que o Rei não ficaria naquela noite.
Luís XI partiu ostensivamente, mas regressou em segredo, entretanto por uma porta lateral.
As suas instruções foram de tal modo cumpridas que todo a gente, vizinhos e incluindo um possível ladrão, poderiam pensar que a casa estava desabitada, embora o rei permanecesse com o seu médico e o capitão da guarda.
— Espero — disse o Rei— que o meu amigo prestamista seja roubado esta noite, para que a minha curiosidade fique satisfeita. Bem, cavalheiros, que ninguém saia amanhã do seu quarto, sem ordem minha, sob pena de severo castigo.
Toda a gente saiu e se foi deitar.
No dia seguinte, de manhã, Luís XI foi o primeiro a sair do quarto, dirigindo-se à sala do tesouro; não se admirou demasiado ao ver os rastos de um largo pé marcados nas escadas e corredores da casa. Procurando não pisar aquele indício, chegou à porta do gabinete, e encontrou-a fechada e sem o menor sinal de violência. Estudou a direcção dos passos, porém estes foram-se tornando mais débeis até desaparecerem por completo, sem possibilidades de descobrir por onde fugira o ladrão.
— Mestre Cornelius — gritou o Rei. — Foste roubado com toda a arte!
Ao ouvir o Rei, o velho saiu do quarto visivelmente afectado pela notícia. Luís XI levou-o para que visse as pegadas, porém ao inclinar-se o soberano fixou, por casualidade, as sapatilhas do avaro, e deu-se conta que encaixavam perfeitamente com os rastos impressos na sala. Não disse nada e conteve o riso, pensando em todos os inocentes que haviam sido castigados. O avaro dirigiu-se rapidamente ao quarto do tesouro. Aí, o Rei ordenou-lhe que fizesse com o seu pé, um rasto ao lado dos que ali existiam, e convenceu-se que ele mesmo era o ladrão.
— Falta-me o colar de pérolas — exclamou Cornelius. — Isto é uma bruxaria; eu não saí do meu quarto.
— Não tardaremos a sabê-lo — disse o Rei, um tanto desconcertado com a evidente má fé do homem.
Mandou chamar os guardas que haviam permanecido de vigilância e perguntou-lhes que haviam visto durante a noite.
— Ah, Senhor! Um espectáculo de magia — disse o tenente. — O vosso amigo Cornelius saiu do quarto como um gato, tão silenciosamente que ao princípio pensávamos que era uma sombra.
— Eu? -gritou o velho assombrado.
— Ide, e dizei aos outros que podem descer até aqui. — E, voltando-se para o aturdido Cornelius, o monarca continuou:
— Incorreste em pena de morte. Tens, pelo menos, dez homens, na consciência.
Ao notar a estranha palidez no rosto do avaro, apressou-se a acrescentar:
— Tranquiliza-te, eras melhor para sangrar que para matar. E mediante uma substancial multa, poderás livrar-te das garras da minha justiça. Porém, se não fazes construir, pelo menos uma capela em honra da Virgem, expões a queimar-te ao inferno por toda a eternidade.
— Mil, duzentos e trinta e oitenta e sete somam mil trezentos e dezassete — respondeu maquiavelicamente o avaro, absorto nos cálculos. Multiplicado por mil, são um milhão trezentos mil escudos perdidos…
“Ocultou-os nalgum palheiro”, pensou o Rei, que começava a achar a soma bastante atractiva.
Quando Coyctier entrou, ao ver a atitude de Cornelius observou-o atentamente, enquanto o Rei lhe contava a aventura.
— Senhor — disse o médico — neste assunto não há nada de sobrenatural: O nosso prestamista tem a faculdade de andar em sonhos. É o terceiro exemplo que encontro dessa estranha enfermidade. Se quiserdes dar-nos o prazer de ser testemunha dos seus efeitos, podereis ver este ancião andar sem perigo pela borda dos telhados, na primeira noite em que o facto voltar a ocorrer. Nos outros homens que observei descobri uma curiosa relação entre a sua doença e as suas ocupações diárias.
— Acaso não sou vosso médico? — disse insolentemente o galeno.
Ante aquela resposta, Luís XI, deixou escapar um gesto que lhe era habitual quando se encontrava ante uma réplica oportuna…
— O caso de mestre Cornelius — continuou o médico — é evidente que os acessos se apresentam cada vez que durante o dia experimenta receio especial pelos seus tesouros. Ao despertar, os sonâmbulos não conservam a menor memória dos seus actos.
— Deixe-nos — disse o Rei.
Quando Luís XI ficou só com o avaro, mirou-o com um sorriso frio.
— Senhor Hoogwirst — disse, inclinando-se — todos os tesouros enterrados em França pertencem ao Rei.
— Sim, Senhor, tudo é vosso, e vós sois dono das nossas vidas e das nossas fortunas; porém, até agora haveis tido a clemência de não tomar mais do que o necessário.
— Olha, homem, se te ajudo a encontrar esse tesouro, não será nenhuma extorsão para ti compartilhá-lo comigo.
— Não, Senhor, não quero compartilhá-lo, quero oferecê-lo inteiramente depois da minha morte. Porém, qual é a vossa ideia?
— Espiar-te, eu mesmo, durante; os teus passeios nocturnos. Outro que não eu, seria de temer.

Mestre Cornelius
(fonte:Wikipédia)

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