13 de agosto de 2012

CALEIDOSCÓPIO 226

Efemérides 13 de Agosto
Alfred Hitchcock (1899 – 1980)
Alfred Joseph Hitchcock nasce em Leytonstone, Inglaterra. O reconhecido mestre do suspense inicia a sua carreira no cinema em 1919, com a ilustração de cartões de títulos em filmes mudos, estuda edição e direcção cinematográfica e em 1922 dirige No. 13 or Mrs. Peabody, um filme inacabado. Entre 1929 e 1939 dirige vários filmes no Reino Unido, em 1939 muda-se para Hollywood inicia uma carreira brilhante, deixando aos cinéfilos e aos amantes do policiário verdadeiras obras-primas. O ambiente que Hitchcock consegue criar nos seus filmes é caracterizado por um suspense que não depende apenas do argumento, mas que é fortemente influenciado pelos efeitos de luz e sombra, pelo movimento da câmara e pela banda sonora.



TEMA — ALGO DE MUITO, MUITO ESTRANHO — O POÇO
De Cornell Woolrich
Havia a presença da morte na solidão da noite. E ele sentiu na atmosfera como que uma respiração ritmada, em ondas que lhe iam directamente ao cérebro.
O sol já se escondera há muito, mas lá para os lados do horizonte havia uma ténue linha cinzenta desfazendo-se lentamente no céu. O ar era pesado e opressivo.
Quando já estava distante de casa uns cinco quarteirões, teve a sensação de que alguma coisa estava errada. Talvez, naquela noite, o destino interferisse e o poço não fosse alimentado.
Embora, para a estação em que estavam, a noite fosse bastante quente apressou o passo e levantou a gola do capote. As sombras, à sua direita, começaram a mover-se, a dançar, à medida que caminhava dentro da noite.
Estava com medo, porém mantinha-se calmo. E quando se aproximou da sua casa, escolhida para retiro e solidão, e onde havia o grande e velho poço, escondido no pomar abandonado, diminuiu o andamento. Antigas recordações participavam no temor que lhe invadia o coração, naquele momento. Por qualquer razão, que não descobria, o instinto dizia-lhe que alguma coisa estava errada; porém, por mais que procurasse não conseguia descobrir onde podia estar o erro. Um relâmpago assustou-o e logo se ouviu ao longe o ribombar de um trovão anunciando lentamente a tempestade. Parou hesitante alguns segundos; depois, resolutamente, percorreu os últimos metros que levavam à esquina de onde já se avistava a casa, agora mergulhada em completa escuridão. Não havia já aquela multidão curiosa, aglomerada em frente da porta e dificilmente contida pela polícia. Aquilo acontecera uma vez, há muitos anos, quando ele era ainda muito novo e inexperiente, e morava no centro da Inglaterra.
Dois meses de contínuo terror haviam precedido o acontecimento. Polícia, inquéritos, pesquisas pelas alamedas húmidas, os quartos cheirando a mofo — tudo aquilo, enfim, que viveria sempre com ele.
Agora, porém, era diferente. Olhou para a casa escura e completamente deserta. Parou debaixo de uma enorme e velha árvore de tronco retorcido…
Afastado daquele horrível pensamento, outro o substituiu. Talvez fosse aquilo o que o estava a incomodar, talvez ele tivesse esquecido qualquer coisa e “ela” tivesse desconfiado e fugido enquanto ultimava os preparativos. Os preparativos eram para o caso de ter que fugir rapidamente… Mas… E se ela se tivesse ido embora? Aquilo estragaria todo o plano. A lua, os planetas, as influências astrais — tudo conferia “naquela noite”. Retardar o ritual da visita ao poço, mesmo por vinte e quatro horas apenas, seria fatal para os seus planos e para as exigências do poço.
Teria de ser “aquela noite”.

Durante vários dias havia sido grande o número de pessoas que respondera ao seu anúncio que mandara publicar nos “classificados” do London Times. Fora “ela”, porém a única que preenchera todos os requisitos necessários. Já ultrapassara a meia idade e não tinha parentes vivos, os seus papéis estavam em ordem e era completamente desconhecida na região. E, para completar parecia tão ansiosa por conseguir emprego, tão interessada em tornar-se governanta. Caminhava preocupado, pela maltratada alameda que levava à entrada da velha casa. Positivamente ia desencadear-se um temporal naquela noite. O ar estava pesado. Como um fantasma dentro das sombras, olhou duas vezes para dentro da casa e circundou-a. Tudo parecia em ordem. A única luz que se via era a do quarto da nova governanta. O quarto dela ficava nas traseiras da casa, no segundo andar. Então — pensou ele — ela estava ali! Nada suspeitava, portanto. E o prazer antecipado, que sentiu ao ver que tudo corria como planeara, tranquilizou-o.

Tocou à campainha da porta quatro vezes. Uma precaução tola da governanta mandar colocar aquela campainha por causa dos pedintes e importunos. Tocou novamente quatro vezes e depois entrou, usando a própria chave, nova e reluzente.
Já dentro da casa, olhou para o grande e antigo relógio de bolso, que se orgulhava de conservar, e então trancou a porta por dentro.
Andou pela casa toda, examinando tudo minuciosamente, Estavam sozinhos agora — só os dois! Sim, ela estava ali, pois podia ouvir os seus passos, movendo-se no quarto, e via a réstia de luz por baixo da porta. Certificando-se de tudo isso, os temores que sentira, a princípio, dissiparam-se completamente. Agora sabia que as suas actividades naquela noite, decorreriam como planeara, e, mais tarde todos comentariam o caso intrigados — seria o sucesso!
O vento soprava mais forte e ele ouvia-o assobiar por entre as velhas árvores que circundavam a casa e as macabras macieiras.
Sim, era ums noite perfeita para a sua visita bianual ao poço, com uma dádiva.


Lá estava ele — o poço — dentro da noite tempestuosa, a boca escancarada esperando a vítima imolada em seu louvor. Na noite anterior, estivera lá, removera a tampa velha, e limosa e atirara no vácuo as ervas que eram a preparação habitual para a cerimónia da noite seguinte. Já pressentia o apelo do poço esfaimado, dentro da noite escura, e do ar carregado de electricidade pela tempestade iminente.
— Porque ninguém compreendia, como ele, a necessidade urgente de todos os poços serem alimentados, de vez em quando? Afinal, ele compreendia aquela fome, como uma urgência física!
Dirigiu-se à biblioteca de paredes cobertas por velhos livros e acendeu o candeeiro de querosene.
Uma luz amarelada espalhou-se pela sala. A velha arca com tampo de couro pareceu-lhe ainda mais pesada do que habitualmente, quando a arrastou para fora do armário. Os três ferrolhos de cobre pareciam mais difíceis de destrancar. Parecia um protesto mudo, uma tentativa para dissuadido ou… talvez avisá-lo…
Mas, por fim, a tampa abriu-se, sem ruído, como sempre. Primeiro colocou a longa tira de veludo negro sobre a escrivaninha ao lado; o veludo estava um pouco puído, nalguns pontos. Teria que providenciar para obter outro o que era sempre um aborrecimento porque certas pessoas têm a mania de fazer perguntas.
A corrente, porém, estava brilhante como sempre; uma das extremidades apresentava-se um pouco enferrujada, mas isso era inevitável. Os elos tiniram, macabros, quando a colocou ao lado da tira de veludo.
Então, com extremo cuidado, retirou do invólucro de seda roxa o livro que lhe custara tanto esforço físico e mental a conseguir. Colocou-o ao lado dos outros apetrechos. Mais as três pequenas facas de cabo de chumbo e ali estava todo o equipamento que iria necessitar para o ritual daquela noite. Estremeceu de prazer ao fitá-los em tão perfeita ordem.
Enquanto trabalhava ia pensando que seria bom que “ela” já estivesse a dormir quando entrasse no quarto com a tira de veludo negro pronta.
Agora, com mais prática, sabia que era mais fácil assim. De facto, era muito desagradável quando o escolhido resolvia debater-se, espernear. Já depois de bem amarrada e pendurada por cima do poço pouco lhe importava que se debatesse ou não, ou o que tentasse dizer com os olhos dilatados pelo pavor.
Na verdade, chegara à conclusão de que quanto mais se debatesse e lutasse por cima da boca do poço mais valiosa se tornava a dádiva para as negras águas que esperavam, lá em baixo.
No momento exacto em que assim pensava, em frente da mesa onde o equipamento preparado esperava para entrar em acção, ouviu um leve ruído atrás de si, voltou-se rápido a tempo de levar uma pancada que lhe atingiu o nariz e os olhos com toda a violência. O golpe fora vibrado com uma arma preparada com uma das suas grossas meias de lã, cheia de seixos da beira do poço. A pancada foi dada com tal precisão “que perdeu o “controlo” dos movimentos e não conseguia mover-se nem falar, embora continuasse a perceber o que se passava à sua volta.

O rosto dela tinha uma expressão dura, firme, determinada, e pode vê-la bem quando ela se moveu sob o círculo amarelo da luz do candeeiro. Já nem parecia aquela tímida senhora, fraca e idosa que escolhera entre tantas outras candidatas ao emprego, e que, na verdade estava condenada a ser sacrificada, em homenagem ao poço.
Certamente notou que ele acompanhava os seus movimentos com os olhos, pois aproximou-se bastante e sorriu. Era o mais terrível e indescritível sorriso!
Em poucos minutos já lhe havia amarrado os pulsos com o veludo. Então, cuidadosamente, prendeu o pequeno gancho da extremidade da corrente na argola presa à outra corda, especialmente destinada a este fim. Gotas enormes de suor frio escorriam-lhe da fronte, enquanto com os olhos horrorizados acompanhava todos os gestos dela.
Lutando inutilmente pensou em comunicar com ela pela força do pensamento, para fazê-la mudar de ideias. Se, ao menos, possuía a mesma crença por que não o avisara? Sim, porque então poderiam trabalhar os dois, juntos, no culto da adoração ao poço procurando outra pessoa qualquer para ser sacrificada. Ainda não era tarde demais…

Os que compreendiam como eles a fome do poço não se deviam sacrificar mutuamente!
Mas, quem era ela? Que pretendia aquela mulher?
Quando ela se aproximou com uma das facas na mão ele pareceu despertar do torpor em que estava e gritou apavorado.
Mas sabia que era inútil, pois se fora ele próprio quem escolhera aquela casa isolada para que nada interferisse na hora do ritual…
Não obstante, continuou a gritar, pois sabia, melhor que ninguém, que quando ela desferisse com a terceira faca o terceiro golpe ele já não poderia gritar: apenas gemer dolorosamente, penosamente.
Quando o primeiro golpe lhe fez jorrar o sangue da garganta torturada, dilatou os olhos. Sim, porque ao vibrar o golpe com uma das facas de cabo de chumbo ela aproximara-se e fitara-o. E, ao fitá-lo, ele reconhecera-a… certificou-se de que estava perdido! Ao reconhecê-la ficou completamente louco. Porque já vira aquele rosto, antes! Era o mesmo rosto que tinha visto muitas vezes e há muitos anos… Vira aquele rosto, muitas vezes, nos inquéritos, nas pesquisas policias…
Era o mesmo que ele vira, muitas vezes, vermelho e inchado, molhado de pranto, fitando-o, magoados, doloridos, aqueles mesmos olhos!
Mesmo nas fotografias dos jornais eles fitavam-no sempre!
Sim, ela era a mãe magoada, triste, inconsolável, de uma bela rapariga que ele uma vez sacrificara no Condado de Suffolk, há muitos anos, numa noite de tempestade, à meia-noite na boca daquele mesmo poço…

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