22 de julho de 2012

CALEIDOSCÓPIO 204

Efemérides 22 de Julho
Bartholomew Gill (1943 – 2002)
Mark McGarrity nasce em Holyoke, Massachussets, EUA. Formado em literatura inglesa, professor, repórter, escritor utiliza o pseudónimo Bartholomew Gill para a escrita de romances policiários. O escritor estuda em Dublin nos anos 70 e passa a viver entre os EUA e a Irlanda. É por isso que a é neste país que se desenrola a sua série mais conhecida, Inspector Peter McGarr, iniciada em 1977 com McGarr And The Politician's Wife, — também editada com o títuloThe Death Of An Irish Politician — e com um total de 16 títulos publicados. Em 1990 o livro Death Of A Joyce Scholar, o 8º da série Peter McGarr é nomeado para o Edgar Award Best Novel.



TEMA — NO DOMÍNIO DAS FÁBULAS — O CÃO E O LADRÃO
De M. Constantino
No tempo em que os animais falavam, um ladrão saiu da noite escura e entrou num quintal para roubar. O cão de guarda começou a ladrar junto da porta de casa. O ladrão para fazê-lo calar, partiu um grande pedaço de pão que trazia consigo e pediu ao cão que o aceitasse em nome da amizade, prometendo levá-lo para a mata onde vivia e onde existia muito boa caça. O cão deixou de ladrar um momento e respondeu:
— Se agora me dás o pão porque queres entrar, será quando eu estiver a morrer de fome e tu não precisares mais de mim mo darias? Não quero que o teu pão entre na minha boca e me cale a língua. Vai-te antes que os meus dentes se fechem nas tuas pernas. Entretanto ladrarei para despertar os meus amos e a família. Vai-te, leva o teu o pão que querias trocar pela minha consciência…

A lição pode aproveitar a muitos homens que deveriam aprender a domar os apetites!



TEMA — CONTO — O HOMEM DO SORRISO IDIOTA
De M. Constantino
Um sorriso vago, idiota, desenha-se na boca de dentes amarelecidos, lábios ressequidos num rosto esquálido de barba rala e grisalha, cabelos desalinhados de igual tom.
Õ guarda segura-lhe o ombro e impulsiona-o no sentido da saída. Murmura-lhe algumas palavras que não escuta, apático, alheio à liberdade, alheio à vida, alheio ao mundo distante ou perto que o espera: um mundo a que não pertence…
Por momentos uma centelha passa-lhe pelo cérebro confuso, como uma interrogação sem resposta: pertencera a algo ou algo lhe pertencera? Fora algum dia alguém?
Indiferente vê o alto portão de ferro fechar-se atrás de si. O muro alto, a fieira de arame farpado incrustado no ferro, encurvado para dentro, interrompido por guaritas esparsas.
Após vinte anos de clausura parece-lhe sem significado “o dentro”, “o fora”…
De frente para o grande portão fechado, começa a recuar, medroso, protegido no imbecil sorriso; pernas pouco firmes de calças castanhas, velhas, trôpego numas botas sem cor, que excedem largamente o volume dos pés. Pára inseguro deixando escorregar do ombro pelas abas do casaco coçado, a trouxa atada com o cordel descolorido na ponta de uma pequena vara.
Olha vagamente para trás… volta-se enfim e começa a caminhar, num incaracterístico, passos indiferentes do destino.
Para onde?
Segue a estrada.
Sente fadiga e senta-se na grama da berma. Por hábito, esquadrilha o vulto de uma farda… deita-se para trás, braços abertos qual cruz humana; contempla o céu.
Procura lembrar-se de si mesmo. Busca dentro de si algo comum ao ser humano. Vinte anos no meio da rudeza inumana, da barbárie quase primária, apreende-se com facilidade a insensibilidade e visão sobre-humana…
Na quietude do campo, longe da rudeza despersonalizante, olhos fixamente postos no azul do infinito, a criatura esquecida de si mesmo nota o sabor amargo-doce de uma lágrima esquiva, solta de algum lugar remoto e invisível da alma, rolar pela face... porventura a primeira de um período de quase duas décadas.
Ergue-se.
Num grito rouco, louco, brama:
— Não te enganes idiota! Não és ninguém! Para onde vais? Não tens família, não tens lar! Onde está a tua mulher? Tens mulher? Onde está o teu filho? Tens um filho? Sim, tinha um filho, ou antes, tivera um filho…
Idiota, idiota, desperta… não existes!
A cabeça cai-lhe sobre o peito, pesada de desespero, leve de confiança.
Um rafeiro escanzelado, veio a medo cheirar-lhe as calças. Alcança um olhar em redor e deita-se-lhe aos pés…
O rosto pálido, vislumbra-se mais esmaecido.
A solidão atrai solidão! Um outro “sem ninguém”…
Baixa o pé que se erguera para a violência. Dá uma risada curta, rouquenha.
— Estás enganado, camarada; a ruim porta bateste! Para onde vais?
O rafeiro não mexe.
Ajoelha-se mecanicamente. Abre a trouxa num gesto automático. Um arremedo de brandura toma-lhe os lábios rudes.
Parte o pedaço de pão em dois.
O rafeiro fareja antes de o tocar. Curva-se para a frente, sem se levantar, pisca os olhos e começa a mastigar.
Quase simultaneamente engolem os quinhões.
Ata a trouxa e agarra-se sem uma palavra. Corra os punhos e ergue-se em desespero. — Vou-me embora! Para onde? Para o diabo que te carregue!
O fogo do desvario… da inconstância, do tudo e nada resolvido.
Como se fora atingido por uma chicotada eléctrica, endireita-se, volta à estrada.
— Desanda, desanda camarada! É melhor supor que temos um destino… uma casa, uma cama com lençóis brancos… lençóis brancos? Riu distante: — O que é isso?
O cão aparentando compreensão, antecipa-o uns passos à frente, cabisbaixo. Caminham.
Abaixo avista-se o arvoredo.
O sol abate-se no horizonte. A noite aproxima-se inexoravelmente.
O automatismo dos passos cede; as pernas tornam-se pouco firmes.
O fim é chegar a um abrigo. O futuro, a mesma vaga insegurança alvar… um companheiro de jornada, quiçá sofrendo da mesma idiotez.
Não há casa ou barraca; não há fumo ou luz de presença humana. O mundo em volta devolve-lhe a solidão de seu próprio interior.
O corpo precisa de repouso.
Vagamente consciente, a entendimento comum entre o racional e o irracional, embrenharam-se no mato por um corrego estreito e começaram a descer. Encontra uma árvore mais entroncada, livre de arbustos. Cai de joelhos encosta-se depois com a trouxa a servir de cabeceira. O cão enrolou-se com o queixo apoiado no seu peito.
— Fraco apoio escolheste, amigo — pensa. Mas o facto de algo ou alguém o escolher para um simples encosto dava-lhe um sentido de vida.
O grande túnel da floresta impressiona pelo silêncio.
Será que o mundo parara? Para si, há vinte anos…
Sob que acusação? Era-lhe indiferente… com o mesmo sorriso idiota que se tornara uma constante, adormece perdoando-lhes todo o mal de que o acusaram e que ele, na verdade, não praticara.
Assim que pudesse rever a mulher, a candura da infância dos cinco anos de uma criança que era seu filho…
Amanhece, Sente frio e fome.
Abre a trouxa. Restam breves migalhas que o cão lambe.
Levanta-se. Procura descortinar um riacho, uma poça de água…
Nada. Não tem dúvidas que encontrará a cidade, mesmo que no fim do mundo.
Tinham-lhe dado, com uma advertência severa do director prisional, algum dinheiro. Quando encontrasse uma tasca, chegaria para dois… três dias… depois, bem, depois não se importava. Quem iria dar trabalho a um penitenciário de aspecto envelhecido… um tipo de figura indesejável?
Sintoniza-se no sorriso idiota, espelho do espírito vazio.
Retoma o caminho.
Por estranha afinidade, o cão afigura-se corroído pelos sintomas do acompanhante. Segue indiferente, cheira aqui e ali um excremento ressequido, mordisca umas ervas tenras… não se digna olhar o acompanhante… a relação resume-se ao caminho comum.
Surgem as primeiras casas.
Pára e fica a olhar, céptico, angustiado pelo desconhecimento da terra onde nascera, brincara em loucas correrias, trabalhara honradamente, tivera um dia família.
O monte de terra inculta, povoada de dezenas de barracas velhas, onde se rebolara pela terra suja, era apenas uma visão fugidia na mente… nos morros, na pedreira arrasados, erguiam-se grandes edifícios, ruas asfaltadas…
— Gaita! Não percebo nada disto! Percorre meia dúzia de ruas, limpas, numa doida procura de referências.
Em vão…
Sente fome.
Indaga demoradamente os arredores para descobrir uma tasca. Visiona o passado… duas mesas de pinho, um balcão de mármore enegrecido, mal lavado dos círculos do fundo dos copos de vidro. A fantasia trouxe-lhe o cheiro e o sabor do “mata-bico” da aguardente.
Distrai-se. Não vê aproximar-se os homens da rede.
O cão mete-se entre as pernas, quase o derruba, e num impulso de pavor foge a latir para ser apanhado pela perícia dos guardas camarários, os apanhadores de cães vadios.
Esboça um gesto de revolta, pronto a lutar pelo recém-companheiro perdido. O medo, o fantasma das fardas incrustado nos mais ínfimos rincões do seu ser, acobardam-no.
Volta-se silencioso sobre os próprios passos, cabeça baixa, um animal escorraçado de cérebro entorpecido. Revolta? Dor? Vergonha? Simplesmente medo, o medo idiota nado e criado na casa grande das férreas grades, no conjunto de centenas de outros sentenciados sem alma, do inescrúpulo rude dos vigilantes cujos bastões ao menor protesto prostravam indiscriminadamente o corpo mais robusto.
Entre ele e os acontecimentos recentes dispõe-se, instintivamente, a colocar a maior distância.
Abranda.
Suspira. Encontra um misto de taberna mercearia onde entra. Come e bebe: pão, queijo, vinho. Come sôfrego, babando-se pelos cantos da boca. Limpa a barba às costas da mão.
Bebe muito. O vai-vem dos copos dá-lhe coragem para estabelecer breve diálogo com o taberneiro.
O homem é novo na área. O invisível muro de granito que se lhe opõe aos indícios sobre a família, mantêm-se.
Dorme num albergue.
Já não possui dinheiro.
Os farrapos que lhe cobrem o corpo denunciam miséria e proveniência; afastam qualquer hipótese de trabalho.
Estende a mão à caridade.
— Você não trabalha?
— Eu quero, mas ninguém me dá trabalho.
— Porquê?
— Já viu que sou um ninguém, um indesejável idiota? Um idiota mesmo…
Passa dias sem comer. Por vezes tenta tirar uma maçã, um outro fruto, algo comestível, dos cestos expostos nos mercados, nas entradas das lojas: é bem sucedido ou leva pancada.
Torna-se um animal detestável para todos, já que o fora sempre para si mesmo.
Afastado pela sociedade, corroído corpo e espírito, vive, se viver será pela lembrança de algo remoto… era esperança, não era esperança… o último elo à vida, não obstante
Na razão dolorosamente massacrada reconhece as badaladas de um relógio da igreja. Ouve música dentro de si: a única coisa que ainda não mudara, aquela igreja.
Não conhece o padre, não reconhece nenhuma outra pessoa… afastam-se mesmo à sua aproximação… o dom religioso também tem cheiro, e o cheiro do incenso não disfarça o odor do sórdido e miséria… mas…
… enfim uma informação: a esposa morrera, o filho trabalha algures na cidade…
Pressente, que um mundo diferente pode estar à sua espera.
Precisa de dinheiro, necessita viver, correr as ruas, os parques, os cafés, os restaurantes… precisa… está disposto a tudo para o conseguir!
Um táxi pára no átrio.
O passageiro desceu, estendeu duas ou três notas ao motorista. Este, um rapaz novo, bem apessoado, sai do carro ainda com o dinheiro na mão e aponta um local ao passageiro.
Desajeitado, a figura de mendigo olha em volta. A luta dentro de si debate-se, “é melhor desandar”… “é a minha chance”… vence a última hipótese.
Apanha uma pedra grossa e quando o motorista voltou para entrar no carro, recebe em cheio a pedra na testa. Cai pela poria aberta do carro, encharca de sangue o banco… um fio de sangue corre-lhe pelo ouvido, outro pelo canto da boca…
Apavorado mas ávido, o homem puxa o dinheiro. Olha de relance a pequena chapa junto do volante: a foto de uma mulher nova, com uma criança adorável ao colo; um nome — Carlos Veloso.
Olhos esbugalhados, coração apertado, um urro de animal ferido sai da boca do agressor:
— Meu filho! Meu filho!
E cai, sem vida comoo que fulminado por um raio invisível.
Um sopro de vento, leve e lento, arrasta duas notas pelo asfalto.


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